Rio, 8 de janeiro de 1855: A Última Noite de 1854
Et une annèe entière a replié ses ailes
Dans l’ombre d’une seule nuit!
(Lamartine)
Ainda vos lembrais do ano passado? Ainda não esquecestes a última noite de 1854?
Era uma noite de luar, mas turva e carregada. O céu cobria-se de nuvens. A natureza estava calma e sossegada. As horas corriam silenciosamente. Deu meia-noite. Um ano terminava, um ano começava. Mas nem um sinal, nem um vestígio atestava essa grande revolução do tempo que se acabava de consumar.
Tudo continuava tranquilo. A noite seguia o seu curso ordinário, e a lua deslizava solitária por entre as nuvens cinzentas e carregadas que alastravam o céu. Que importava, com efeito, que essa hora que soava marcasse o termo de um ano? Que importava que a fraca inteligência do homem procure limitar a obra de Deus?
O tempo corre eternamente; os dias se sucedem como os meses, como os anos e os lustros. Um século que acaba, uma idade que finda, um mundo que desaparece, é sempre a rápida transição de um segundo, é apenas um instante que passa. Todos nós sabemos isso; todos nós vamos correr o tempo com indiferença; e entretanto o coração nos palpita com emoção quando ouvimos soar esta hora fatídica da meia-noite, que marca o fim e o começo de um ano.
É quase impossível reprimir nesse instante solene um movimento involuntário, que nos faz volver um olhar saudoso ao passado e procurar no fundo d’alma algum vago pressentimento, alguma promessa risonha, que nasce subitamente como o novo ano que começa.
Na vida de alguns homens esse rápido instante é o cântico de um belo poema. Recordações dos dias que passaram, saudades de uma quadra feliz, culto respeitoso a algumas reminiscências sagradas, aspirações de glória e de ambição, fé em Deus, esperança no futuro, todas estas grandes coisas lhes perpassam confusamente na fantasia, brilham rapidamente, e se extinguem como esses fogos brilhantes que sulcam as trevas nas noites calmas e serenas.
Para aqueles que ainda se deixam involuntariamente dominar pela poética e graciosa ficção do ano-bom, este dia é um oráculo cheio de presságios e de vaticínios. Quanto desejo querido, quanto voto ardente, não vem afagar no fundo desses corações aquela primeira aurora do ano! Neste dia pensa-se naquilo que mais se ama no mundo, janta-se no seio da família, visita-se os amigos e troca-se mutuamente as boas entradas de ano, os presentes de amizade, as étrennes.
E assim no meio de tudo isto, no meio desses cuidados e desses prazeres, dos receios e das esperanças novamente criadas, esquecemos a verdadeira e talvez única realidade deste dia. Um ano que passa – um outro ano que vem, e com ele a idade e a velhice...
Bem entendido, não falo aqui de certa gente, que desejaria que um ano fosse um minuto, e que passasse como uma hora de tédio, ou um dia de convalescença. Parece incrível, porém não é menos verdadeiro. Logo em primeiro lugar temos o pretendente à senatoria, que se acha na idade crítica dos trinta e nove anos. Vem depois o órfão que espera os vinte para requerer suplemento de idade, e empolgar a herança paterna.
Finalmente a menina que desterra as malditas calças e o vestido curto, e entra no rol das moças em estado de casar; e o estudantinho de latim, que todos os dias procura no queixo as promessas de um buço rebelde, e que suspira pelo dia em que se emancipará do colégio e conquistará a santa liberdade da academia e o direito de fumar o seu charutinho.
É preciso não esquecer o sujeito que tem os seus cinquenta e nove anos, e que deseja os sessenta para ver-se livre da guarda nacional e do recrutamento; nem também o empregado público que suspira pelo último ano para a jubilação, e o juiz de direito que está a completar o tempo de ser promovido à primeira entrância. Para esses o novo ano é sempre alegre e feliz; é o ano da salvação. Mas para nós, que não estamos nesse caso, que nos prometerá este ano, que nasceu no meio da chuva como um sapo, tendo por madrinha a lua cheia ?
Será isto mau agouro, como entendem as velhas, ou será ao contrário, um presságio de abundância e fertilidade, que nos livrará da carestia dos gêneros e não nos deixará mais à mercê das usuras de alguns marchantes?
Creio antes esta última versão. Já não me fascinam essas promessas brilhantes que nunca se realizam. Embora turvo e carrancudo, o ano novo para mim se anuncia cheio de futuro e de propriedade para o meu país.
Ninguém sabe que encantadores mistérios, que risonhos segredos ocultas no teu seio. Ninguém sabe quanto primor, quanta graça, quanto mimo de beleza, tuas asas de ouro esparzirão sobre alguma cabecinha virgem que ainda brinca com os sonhos da infância! Vem, novo ano! Vem como o hábil artista do tempo dar os últimos toques a alguma bela estátua moldada pela natureza, e arredondar a curva graciosa, as ondulações suaves de umas formas encantadoras!
Vem, como o sopro de Deus, como o fogo do céu, desabrochar uma rosa ainda em bastão; perfumar a florzinha delicada que apenas começa a abrir os seios às auras da vida, e tecer de fios de ouro os dias de uma existência pura e tranquila!
Vem igualmente dar um pouco de juízo a muita cabecinha louca que aí anda às voltas por este mundo, tirando o juízo a quem o tem! Vem fértil de maridos, de bailes, de teatros, de modas, de casamentos. Traze-nos da Europa algumas boas cantoras; e não te esqueças de substituir a anarquia que hoje reina no teatro por uma ópera digna de ti e da boa sociedade desta corte. Para isto já tens o projeto de uma nova companhia lírica no Teatro de S. Pedro Alcântara, o qual podes realizar perfeitamente.
Quando tiveres feito todas estas coisas, meu caro, tem paciência, toma a vassoura e a carrocinha, e trata de varrer e de limpar as ruas da cidade, no que farás um grande serviço. Estimarei que removas ao menos a lama de algumas ruas, porque então ser-me-á possível especializar as outras, e defender-me assim da censura que me fizeram nesta folha e no Jornal do Comércio por ter falado geralmente; como se a culpa fosse minha, de não poder achar uma exceção à falta de asseio!
Acho escusado dizer-te que dispensamos o calor de oitenta graus, as febres de qualquer cor que sejam, as guerras por mais interessantes que te pareçam. Quando muito, para quebrares a monotonia do tempo, ficas com o direito salvo de elevares a temperatura até o ponto de desejar-se o sorvete e os gelados; e de produzir algumas intermitentes, para que os médicos não esqueçam de todo a ciência. Em vez de guerras do Oriente, podes fazer aparecer alguns processos monstros, daqueles que passam a quarta geração, e que os advogados ingleses dão de dote às suas filhas.
Se quiseres este programa essencialmente conciliador podes contar comigo. Escrever-te-ei as mais pomposas efemérides de que haja notícia no mundo; e em dezembro far-te-ei um epitáfio, digo, um retrospecto, que ocupará as colunas do Correio Mercantil durante oito dias consecutivos.
E para começar vou já cuidando em traçar a história desta primeira semana que começa pelas étrennes e acaba pelas cantilenas dos Reis. A chuva, as tardes de trovoadas, o tempo enfarruscado, entristeceram quase todos estes dias.
Na sexta-feira, porém, uma bela noite de luz, fresca e agradável, parecia convidar as alegres procissões que lembram a antiga tradição dos três reis magos, vindos do Oriente guiados por uma estrela para adorar o Menino Jesus.
Hoje, como todos os antigos costumes, esta festa vai caindo em desuso. Já quase não se veem nesta corte aquelas romarias folgazãs, aqueles grupos de pastorinhas, aquelas cantigas singelas que vinham quebrar o silêncio das horas mortas.
A noite de Reis atualmente é apenas a noite das ceias lautas, dos banquetes esplêndidos; de maneira que, a julgar da tradição pelas festas de agora, dir-se-ia que os reis magos eram três formidáveis comilões, que vieram do Oriente unicamente para tomarem um fartão de peixe, de ostras, de maionese e gelatinas.
Em todas as épocas o homem teve a balda de desfazer no presente e de encarecer o passado. “No nosso tempo era outra coisa” dizem os velhos desde o princípio do mundo. Entretanto, seja pelo que for, seja que aquilo que passou exerça sobre a nossa imaginação um prestígio poderoso, o que é verdade é que nossos pais sabiam divertir-se melhor do que nós.
Outrora todas as festas tinham o seu quê de original, o seu cunho particular que as distinguia uma da outra. O Natal era a festa do campo; tinha a sua missa do galo à meia-noite, as suas alegres noitadas ao relento, os seus presepes toscos, mas encantadores. Logo depois vinham os Reis com as suas cantigas, as suas romarias noturnas, as suas coletas para o jantar do dia seguinte. São João tinha as suas fogueiras, os seus horóscopos à meia-noite. Ao Espírito Santo armavam-se as barraquinhas, e faziam-se leilões de frutos e de aves.
Presentemente todas as festas se parecem. Um baile, uma ceia, e tudo feito. Desde o princípio ao fim do ano vai-se ao baile ou ao teatro. Isto ainda seria suportável, se procurassem conformar esta espécie de divertimento à estação que reinasse.
Agora, por exemplo, que entramos na força do verão, como não seriam agradáveis alguns bailes campestres, onde se dançasse à fresca, entre as árvores, nalgum pavilhão elegante levantado no meio de jardins? As moças trajariam seus lisonjeiros vestidinhos brancos próprios da estação; os cavaleiros usariam de um toilette de verão. Nada de rigorismos diplomáticos e de penteados sobrecarregados de enormes jardineiras.
Há nesta corte uma Sociedade Campestre que se podia incumbir de realizar esta ideia; porém infelizmente parece que ela vai marchando rapidamente para sua completa extinção. De campestre só tem o título; no mais é uma sociedade como as outras, com a diferença que dá as suas partidas num pavilhão muito sujo, muito velho e de muito mau gosto.
Houve a lembrança o ano passado de reabilitá-la, e para isso comprou-se um terreno para uma casa; distribuíram-se as ações pelos sócios, e recebeu-se a primeira prestação. Planejou-se, calculou-se, e por fim não se fez nada, na forma do costume. O terreno está a vender, e os sócios que esperem pelas calendas gregas para serem reembolsados do seu dinheiro.
Entretanto parece-me que a sociedade ainda tem muitos elementos que se podem aproveitar; e que, se alguém procurasse dar-lhe um salutar impulso, poderíamos vir a ter uma reunião bem agradável. Então a sociedade devia limitar as suas partidas campestres aos seis meses de verão, e deixar os outros seis meses para os bailes aristocráticos do Cassino e para os saraus brilhantes que costumam aparecer naquela quadra do ano.
Temos conversado tanto e sobre tantas coisas, que deixo ainda muita ideia bonita que aí fica com as outras no fundo do tinteiro, esperando a sua vez de se entenderem sobre o papel. Para as ideias é este um dia de baile; a pena faz-lhes o toilette, como uma criada grave; e, depois de bem vestidinhas e bem elegantes, largam-se pelo mundo a namorar, a torto e a direito, a fazer epigramas e a dizer graças, a bulir este e com aquele, até que um dia ninguém faz mais caso delas.
Antes, porém, de deixar-vos, minha gentil leitora, quero dar-vos as minhas étrennes, embora não vos lembrásseis de mandar-me as festas. O meu cadeau é uma notícia, que creio haveis de apreciar tanto quanto ela merece. Com o novo ano vai continuar (ou já continuou) a ser publicado um lindo jornal italiano e português, do hábil professor Galleano Ravara. Já prevejo com que prazer acolhereis a fride, que, como uma boa mensageira, irá falar-vos a doce e rica linguagem do Tasso, do Dante e de Petrarca, e recordar-vos aquelas palavras de Romeu e Julieta, quando ouviam cantar o rouxinol e a cotovia ao raiar da alvorada.
Por enquanto contentai-vos com estas doces recordações que vos avivarão saudades da Stoltz e das belas noites do nosso teatro italiano. Dizem, porém, que daqui a algum tempo tereis mais do que simples reminiscência: prometem-vos uma cena lírica, onde verdadeiros artistas executarão as obras-primas dos maestros antigos e modernos. Cumprir-se-ão tão belas promessas?
Como sabeis, formou-se nesta corte uma associação para montar no Teatro de S. Pedro de Alcântara uma companhia italiana de primeira força. Já foram publicadas nesta folha as bases da nova sociedade que intenta levar a efeito aquele projeto.
No estado em que se acha a nossa cena lírica, semelhante ideia é um grande benefício. A nova empresa vem promover uma salutar emulação entre os dois teatros, e destruir o monopólio que até agora tem existido, com grave prejuízo do público.
Além deste melhoramento, que resulta do simples fato da concordância, a organização de uma sociedade deste gênero pode trazer muitas vantagens importantes. Os bons espetáculos, o exemplo e a lição de artistas de mérito, hão de necessariamente desenvolver entre nós o verdadeiro estudo da música italiana, e aproveitar muito aos talentos nacionais que aparecerem.
Se a nova sociedade realizar as suas ideias, se, em vez de amostras líricas, nos der verdadeiras óperas, ainda continuará a admitir-se a absoluta necessidade de uma subvenção do governo? Ainda haverá empresa desinteressada que receba 120 contos de réis do tesouro para carregar com um déficit enorme?
Estes exemplos de filantropia desaparecerão infelizmente; porém o governo economizará por ano uma centena de contos, que poderá destinar à construção de um teatro nacional ou de uma pequena ópera, feita pelo modelo dos melhores teatros da Itália e da Alemanha.
A nova empresa tem de lutar com imensas dificuldades; mas se conseguir vencê-las, o teatro de S. Pedro de Alcântara virá a ter as suas belas noites, e reunirá no seu pequeno salão a fina flor da sociedade desta corte.
Que importa que estas noites custem mais caro?
Todos conhecerão que este aumento de preço é puramente nominal, uma noite em que, além de uma brilhante reunião, se tem o prazer de ouvir a verdadeira música de Rossini, de Verdi e de Bellini, de Donizetti e de Meyerbeer, vale mais do que quatro ou cinco noites de ensaios no Provisório, onde algumas vezes se canta para os bancos e para os camarotes vazios.
Entretanto cumpre que a sociedade, desprezando os funestos precedentes do nosso teatro, guarde toda a lealdade nos seus empenhos com o público, e se esforce por manter aquela ordem e regularidade tão necessária à comodidade dos espectadores e aos próprios interesses da sociedade. Assim, os espetáculos devem ter dias certos e determinados na semana, e começarem a horas precisas, nunca excedendo de meia-noite.
Seria muito útil que se estabelecesse também o costume de interromper os espetáculos durante os dois ou três meses da força do verão. Esta interrupção, cuja vantagem ainda não se compreendeu entre nós, facilita à empresa o estudo e preparo de novas óperas, e dá-lhe tempo de contratar novos artistas na Europa. Realizando a nova sociedade estas condições, pode contar da nossa parte com um apoio fraco, mas leal.
Ao contrário, se não corresponder às suas brilhantes promessas não se poderá livrar de uma grave censura; e os nomes que nela se acham empenhados terão de responder ao público e à imprensa pelos males que possam ocasionar ao nosso teatro.
Fonte:
José de Alencar. Ao Correr da Pena. SP: Martins Fontes, 2004.
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