quarta-feira, 2 de julho de 2014
Anáfora (Elizabeth Bishop)
(In memoriam de Marjorie Carr Stevens)
Cada dia, cerimonioso,
Começa com pássaros, e fábricas
A apitar, estrepitosas;
Diante dos céus auri-alvos,
Tão claros nossos olhos se abrem,
E por um instante perguntamos:
"De onde esta força, esta melodia?
Para qual inefável criatura
Que não vimos, foi feito este dia?"
Logo, logo ela surge, e assume
Sua natureza terrena,
E cai vítima da intriga,
Sob o ônus da memória,
Da mortal, mortal fadiga.
Mais lentamente, aparecem
Os rostos sarapintados,
Condensam sua luz, e a escurecem;
Apesar de tantos sonhos
Gastos nela em tal olhar,
Atura nosso uso e abuso,
Mergulha no fluxo dos corpos,
Mergulha no fluxo das classes
Até chegar ao mendigo exausto
Sem livro, sem luz, no lusco-fusco,
Imerso em estupendos estudos:
Este incandescente evento
De cada dia em constante
Constante consentimento.
(Poema: Elizabeth Bishop - Foto: Carlos Diniz - Rio de Janeiro - RJ)
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